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A linha tênue entre exaltação e ameaça do etnoturismo na amazônia

O etnoturismo possibilita uma imersão nos costumes dos povos originários, quando entretanto, esta prática não é feita de modo responsável, prejudica a preservação da cultura de povos indígenas.

Por Ana Clara Aguiar, Carolyne Veras, Beatriz Souza e Thalita Eduarda dos Santos.

A região amazônica é uma área rica em biodiversidade, além da sua fauna e flora, existe uma diversidade de povos indígenas que possuem suas próprias tradições, culturas e conhecimentos. A vontade de conhecer a vivência dos povos que habitam a Amazônia e descobrir os segredos da região, gerou um segmento do turismo chamado de etnoturismo, uma prática que possibilita a imersão na cultura e nos costumes dos povos indígenas. Contudo, quando esta prática não é feita de forma planejada e ordenada, ela pode ser prejudicial para os povos originários.

O Etnoturismo é um ramo do turismo sustentável que serve de ferramenta para ensinar os visitantes a preservar, respeitar e valorizar as tradições dos povos originários, além de ser uma forte aliada para o desenvolvimento da economia local. Isso porque o etnoturismo possibilita o empreendedorismo dentro das comunidades indígenas, principalmente, quando se trata da sua gastronomia e artesanato.

Quando esta prática não é feita seguindo as bases legais, a fim de facilitar a fiscalização, garantir a preservação dos povos, suas culturas e tradições, e resguardar o meio ambiente, os impactos têm o potencial de serem negativos para as comunidades visitadas.

De acordo com o ambientalista, escritor e líder indígena reconhecido nacional e internacionalmente, Ailton Krenak, existem diversos impactos culturais que podem ser maléficos para estas comunidades visitadas, como por exemplo:

“Introduzir hábitos que não existiam naquele lugar e que passam a ser absorvidos por pessoas locais. Dependendo do tipo de visita, ela pode introduzir ideias, conceitos e preconceitos que vão ser assimilados naquela família, comunidade. Isso é um dano. Assim como alguém pode introduzir hábitos que não são dali, o turista pode levar bebida alcoólica, pode levar uma droga, qualquer coisa estranha. Não porque é turista, mas porque ele tem uma cultura diferente daquelas pessoas que ele está visitando.”

Entre outros aspectos negativos do turismo indígena podemos citar, por exemplo, a falta de respeito de alguns visitantes com os costumes e membros da comunidade – principalmente membros do sexo feminino – e a ressignificação de simbolos identitários que tem sentido na memória coletiva local.

“Comunidade precisou se adaptar para sobreviver”

Em busca de investigar como é a prática do etnoturismo na região Amazônica, nossa equipe participou de um dos passeios turísticos da agência Crystal Turismo. O roteiro contou com uma viagem de barco pelas margens do Rio Negro e pelo encontro das águas, com uma visita final a comunidade indígena Yukuro.

A aldeia Yukuro, original de Pari Cachoeira, fica localizada no Parque Ecológico do Lago Janauari e é formada por 5 etnias: Tukano, Tuyuka, Bará, Piratapuya e Makuna. Durante a visitação, integrantes da comunidade realizam rituais e danças característicos da cultura. A prática foi adotada pelo povo Yukuro como forma de sobrevivência em meio a ameaça de extinção da sua cultura.

De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as populações originárias têm sido diretamente afetadas pelo avanço do desmatamento a serviço do agronegócio, extração de madeira, garimpos, exploração de gás e petróleo, além de megaprojetos de infraestrutura. Todas essas atividades, por sua vez, também provocam a degradação ambiental dos territórios indígenas.

Ainda segundo o Cimi, esses ambientes sofrem com a poluição de rios pelo mercúrio e por pesticidas, com a escassez de recursos pesqueiros, com os conflitos entre as comunidades, com o aliciamento para o tráfico de drogas e com a cooptação de lideranças indígenas, entre outras. Somam-se a isso, o aumento da violência contra esses povos, tais como perseguições a lideranças e a antropólogos, e a criminalização das organizações da sociedade civil que apoiam a causa.

É neste contexto ameaçador que a aldeia Yukuro e todas as populações tradicionais brasileiras buscam formas de garantir a sua sobrevivência, em especial a da sua cultura ancestral. Segundo o cacique Daniel Souza, da etnia Tucano, foi o seu pai que abriu a comunidade para o etnoturismo e viu neste ramo uma forma de sustentar o seu povo.

“Hoje em dia, a gente já se acostumou com a visita do homem branco, dos visitantes, mas no começo não foi fácil para se acostumar. Foi uma situação desconfortável, porquê a gente não tinha esse costume de receber os visitantes dentro da comunidade, era uma coisa muito difícil de acontecer.”

O cacique afirmou que são diversas situações desrespeitosas que os membros da comunidade são obrigados a tolerar. “Infelizmente acontece de o cliente vir embriagado, ou sob efeito de alguma coisa. Ele acha uma brincadeira, mas para nós é uma ofensa. Já aconteceu de ofenderem a gente, as mulheres. Só que como a gente depende disso, nós temos que relevar e tratar o cliente da melhor forma possível”.

A prática do etnoturismo demanda todo um esforço e preparo da comunidade local. Integrantes da tribo, inclusive o cacique, são fluentes em português e utilizam ferramentas dos não indígenas para facilitar e tornar o encontro agradável, além disso, Daniel apontou que não consegue nem contar as inúmeras vezes que o ritual de boas vindas é performado durante um único dia.

O líder indígena e antropólogo Justino Sarmento Rezende discorre que o contato entre não indígenas com os povos tradicionais pode afetar a cultura indígena a longo prazo. No entanto, essa relação, ao seu ver, deveria causar mudanças e intercâmbio de visões de mundo e aprendizados entre os dois povos.

“Essa relação com o não indígena deveria ser de duplo alcance de transformação. Por exemplo, os não indígenas que querem conhecer uma região, como a tribo Tikuna, deveriam ter noções básicas da língua de onde vão fazer turismo. Ter uma visão mesmo que seja superficial”, frisou o antropólogo.

A realidade é que, enquanto há uma intensa adaptação da comunidade para que esse estrangeiro seja bem recebido, a maioria dos visitantes não tem conhecimento algum sobre a etnia. Como verdadeiros “colonizadores modernos”, esperam sempre uma colhida total do outro lado, sem perceber que essa comunidade não está nessa circunstância por sua vontade, e sim por necessidade.

Esses são alguns dos problemas enfrentados pelos povos originários amazônidas que recorreram ao turismo como forma de subsistência. A recorrente adaptação dos costumes tradicionais indígenas em função da atividade comercial já se reflete na percepção dos turistas. A professora de espanhol Natália Cardoso, de Fortaleza (CE), quando questionada sobre suas expectativas à respeito da visita à comunidade Yukuru, expôs:

“Eu penso que não vou encontrar uma comunidade completamente isolada com 100% dos costumes preservados. Eu espero algo mais adaptado aos costumes da sociedade da qual vivemos hoje”.

Quem lucra com o etnoturismo?

Outra problemática importante a ser discutida a respeito do etnoturismo é a distribuição do lucro adquirido com as atividades. Atualmente, a divisão dos ganhos entre agência de turismo e comunidade indígena é visivelmente desproporcional, onde a maior parte dos ganhos permanece com as organizações que intermediam o contato entre os visitantes e as comunidades abertas à visitação.

Além da distribuição de ganhos externa, também é necessária uma organização interna em relação ao destino dos lucros para evitar conflitos. A distribuição então fica à critério da comunidade, onde os membros decidem para que parcela vai o capital e onde aplicarão.

O antropólogo Justino Sarmento Rezende ressalta a necessidade do acompanhamento dos lucros, citando um exemplo de desentendimento interno que ocorreu em uma comunidade indígena em São Gabriel da Cachoeira. O motivo geral das divergências de opiniões foi justamente a repartição do capital: Compartilhar com a comunidade ou dividir somente entre os trabalhadores que atuam com o turismo?

Justino também comenta sobre a divisão do trabalho na comunidade. Os rituais tradicionais da etnia são performados inúmeras vezes diariamente. A constante repetição desencadeia cansaço físico e mental, por isso há a necessidade de discussão a respeito do “rodízio” de trabalhadores, que ficam responsáveis por mostrar a cultura tradicional aos turistas.

O antropólogo cita a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) como uma das organizações que podem oferecer auxilio com o manejo do turismo nas comunidades indígenas. A associação sem fins lucrativos atualmente possui projetos de economia sustentável e enxerga o turismo de base comunitária como uma alternativa econômica antagonista às atividades predatórias como a mineração.

Um grito de cuidado

Os maiores desafios que os povos originários enfrentam com essa prática, concentram-se em encontrar um equilíbrio entre adquirir o seu sustento e ainda assim, ser respeitado e preservar a própria cultura. Apesar dos benefícios econômicos, muitas atividades, provenientes da vinda dos turistas, destroem não só o ecossistema, como também as raízes históricas dessa população.

Desafortunadamente, a visão que se tem ao conversar com indivíduos desses lugares, é a de que se tornam vítimas da estrutura e sistema do país. Onde os órgãos que, na teoria, deveriam promover e proteger os seus direitos, acabam negligenciando e ameaçando a segurança de sua identidade.

Conforme os depoimentos do cacique Daniel Souza, na grande maioria das vezes, eles optam por não depender ou aceitar recursos de ONGs, órgãos protetores e até mesmo do Estado. Atitude justificada pelo fato de que o apoio que lhes deveria ser cedido, é muitas vezes cobrado com interesses maiores.

“Hoje em dia, as pessoas que te dão a mão, fazem isso com um interesse maior. Então, em termos de ONGs, Estado, a gente não abraça, a gente depende do nosso trabalho carreira solo. Não tenho apoio de governo, nem de ONG, para não dever nada para eles ", ressalta.

Em relação a Fundação Nacional do Índio (Funai), sua ação acaba por prejudicar a autonomia das comunidades indígenas no que tange ao turismo cultural como uma opção de sustento e renda. Pois, se de um lado deveria regulamentar a prática do etnoturismo nesses lugares, do outro, impede o trânsito de visitantes bloqueando a movimentação de verbas.